terça-feira, 14 de julho de 2009

a solidão é como uma lavra.

"...baixa, obesa, negra, com expressão de deficiente mental, essa senhora mostrava apenas o rosto e estava falando comigo, mas eu não entendia o que ela dizia. nem a conhecia.
me aproximei. aliás, nos aproximamos dela, eu e o radar. ele rosnou, mas acabou percebendo que ela é quem estava presa, e não representava perigo pra nós dois. ela continuava falando baixinho, eu continuava não entendendo nada. aliás, a única certeza que tinha era de que não conhecia aquela mulher que conversava comigo.
só bem de perto conseguir entender a pergunta dela: “você viu a fátima?”. eu não conhecia a fátima também, mas embarquei naquele diálogo dela e respondi que não, não tinha visto a fátima. ela mandou um recado: “se você ‘encontrar ela’, pede pra passar aqui!”. eu disse que sim, daria o recado; olhei bem nos fundos dos olhos opacos dela, dei um grande sorriso, e disse: “fique com Deus!”. ela disse o mesmo, dessa vez bem alto e com clareza, mas não sorriu. não demonstrou emoção alguma. mas eu senti que dei a ela o que precisava, um pouco de atenção. apenas ouvidos.
como as pessoas são sozinhas... não só as “loucas”. não só as mulheres negras e gordas. nem só as que estão em casa sozinhas num domingo qualquer. nem só os que passeiam sozinhos com os cachorros. eu estou aqui, sozinha, escrevendo esse texto. você está aí, sozinho provavelmente, lendo esse texto.
há até quem esteja acompanhado e continue sozinho. mesmo se estivéssemos em um bar, uma casa qualquer, com outras pessoas, não necessariamente estaríamos acompanhadas de verdade. fica cada um no seu quadrado, quase sempre!
a solidão é como uma lavra. tem origem e destino certos. vai do alto até embaixo em poucos ou longos minutos. há quanto tempo você não conta a alguém um sonho que teve? ah, sonhos não têm tanta importância?! quantos dos seus amigos sabem o que você faz no trabalho? quantos dos seus colegas de trabalho sabem exatamente como é o seu trabalho no dia-a-dia?
quantos dos seus vizinhos você conhece? tem alguma louca que mora perto da sua casa? perto da sua casa tem alguma fátima? será que a louca está procurando a fátima agora? será que você as conhece, a louca e a fátima? conhece mesmo seus vizinhos ou estão todos sozinhos?
talvez seja tempo de apagar essa lavra. de conhecer melhor seus vizinhos, seus colegas de trabalho, até seus amigos. é a boa hora para ouvir as pessoas com atenção, olhar no fundo dos olhos delas, se interessar de verdade pelo que elas têm dizer, escutar todas as palavras com clareza e entender até as entrelinhas. mesmo que você não conheça nenhuma fátima. e até mesmo se você conhecer! ou será que a gorda negra não é doida..."?



texto: cris grandi
foto: bruno haddad


2 comentários:

  1. acabei de me encontrar com a Fátima...Dei o recado, ela acabou de passar lá e ficou tudo bem...

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  2. Existem Fátimas em todo canto, feliz ou infelizmente.
    Felizes as pessoas q as reconhecem.

    Cris Grandi.

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